Capítulo I : Nunca te Matarei
- No meu próximo livro, eu quero contar uma história imortal e perturbadora; eu quero juntar as letras, as palavras, as frases e as figuras de estilo, as metáforas, as anáforas e as aliterações certas para ultrapassar a mediocridade de tudo o que escrevi até hoje. Eu quero transbordar mas a água não chega para tapar o fundo do recipiente. Escorrem-me as expressões certas pelas pontas dos dedos. O teclado do computador come-me as insinuações inteligentes. Não consigo. Como escavar ouro em cimento?
- Compreendo Helena; mas conta-me outra vez a história de como os teus pais decidiram dar-te esse nome em vez de optarem pela sugestão da tua avó, de te chamarem Sónia. É a minha história de amor favorita, devias escrever um livro sobre ela. É fantástico como após tantas atribulações acertaram precisamente no nome e brindaram-te com a sina de te transformares numa bela e cobiçada mulher mas invariavelmente quebrada. Deviam ter-te chamado Sónia, talvez fosses menos melodramática. E tens que deixar de ver filmes de culto, o teu discurso está a tornar-se arrogantemente camp e kitsh. Tanto na escrita como nas conversas. Sem falar que ultimamente os teus crimes estão cada vez mais óbvios e rocambolescos; e os enredos? surrealistas. Não sei querida, talvez tenhas mesmo razão. Há falta de mão obra no ensino superior e tens qualificações; já consideraste uma mudança de carreira?
- Oh, Eva, por favor, continua, zomba de mim; nunca tiveste que sentir na pele o bloqueio do escritor. Não compreendes o quão grande é o sofrimento de te rasgares e voltares a construir de cada vez que apagas uma frase. Falar é fácil; qualquer mente com um pensamento mais articulado consegue formular um discurso coerente e até agradável e tu sabes como é doce o meu encantamento quando falo mas escrever histórias que prendem o leitor, que o consomem, que o fazem sofrer e querer consumir as vidas das personagens. Isso, minha cara, é a mais nobre das artes e o pior dos infelizes aquele que pensa ter tal arte consigo e na altura crucial, não consegue passar da palavra à escrita. Durante todos estes anos enganei o mundo com a minha farsa de ser escritora e durante todos estes anos alimentei os meus devaneios de um intelecto superior, possuidor de tal encanto, apenas para me descobrir incapaz. Inerte. Shakespeare ri-se de mim no Inferno,Dostoievski chora por mim em qualquer submundo, Steinbeck escreve metáforas campestres sobre a minha solidão e...
- Sim, sim, basta, também já ouvi essa parte da conversa. Falemos de coisas menos deprimentes. Quando pretendes voltar a ligar ao Virgílio para saírem ? Um cinema, um jantar. Ia fazer-te bem, afastar os pensamentos dessa escuridão. É incrível o quão deprimida fico sempre que passamos tardes juntas ,ultimamente. Eu amo-te Helena, és uma amiga para sempre mas está a tornar-se impossível ajudar-te. Se achas que a tua carreira como escritora é uma mentira, vais bem a tempo de remediar essa situação. Lástimas e dilemas não podem ajudar-te. Já to disse inúmeras vezes mas parece que te alimentas deste estado de auto-comiseração. Como tua amiga tenho que dizer-to: chega a ser patético. Depois de todo o sucesso que alcançaste, o teu nível de auto-censura é ridículo. Parece quase uma farsa.
Mas não era. E Helena era a mais solitária das mulheres na sua fortaleza de pequenos sucessos com livros cor de rosa sangue. Nessa noite, quando Eva saiu da sua presença, pensou durante horas e os seus lugares escuros, que eram muitos, prevaleceram. Lá de dentro saíram os muitos anos de ansiedade causados pela vontade opressora de ser mais. Mais tarde, iria lembra-se dessa noite como a noite em que se libertou da necessidade de ser amada e aceite, para começar a viver fora da sua imaginação. Não entendia que o que desencadeava aqui, era a derradeira prisão do ego. Eva diria não julgar possível essa transformação ter-se dado apenas numa noite e sabia secretamente que Helena e o seu desespero eram especiais.
- Tens razão, - e quando falou, já Helena tinha decidido o que fazer. - a auto-comiseração é a arma dos impotentes. No entanto, o sofrimento é consideravelmente grande. Chega a ser avassalador. Quando já tiveste na mão a sensação de liberdade total que o processo de escrita fluente pode trazer-te, a dor da falta só é comparável à morte de um ente próximo ou a uma separação amorosa intensa. Mas no meu caso, ao contrário dos entes que morrem e dos amores que fogem, a solução está em mim. Ah, Deuses e Monstros, Paris volto para ti. Não espero que o compreendas mas agradeço-te a verdadeira amizade. Nunca te matarei.
(...continua)